sábado, 18 de junho de 2011

18 - O ENGRAMA E A FORMAÇÃO DOS SAMSKÁRAS - Parte 3


 

Nossos egos são então formados, através de eons, de marcas ou engramas que em sânscrito são conhecios como samskáras. Samskáras ou impressões na consciência, ao se atualizarem em cada uma de nossas vidas, são chamadas de vásanas ou hábitos. Toda a nossa dor e sofrimento, encontram em nossos apegos, âncoras de sustentação que vida após vida, nos levam a repetir os mesmos erros e a cair em inconsequência  de nossos atos. Com isso, nosso ego é fortalecido e mais uma vez, caímos na escuridão. O trabalho de libertação do ego, seja dentro de uma disciplina espiritual específica ou através da roda da vida ou caminho da vida mundana, nos leva a perceber a inutilidade e futilidade de nossos desejos egóicos,  despentando assim, o "desejo real" de encontrar nossa alma.

O texto a seguir elucidará um pouco mais esta questão. Até o momento vimos o que nos separa da Vida e do Universo, nos próximos posts, buscaremos o que nos conecta a Ele.

 

Os samskáras e os vasanás na estrutura psíquica do ser humano

Na literatura sânscrita do Yôga não há um termo que traduza literalmente o sentido da palavra "inconsciente", porém, nela aparecem muitos termos que só podem ser compreendidos supondo-se uma concepção de inconsciente. Poderíamos sem exagero dizer que o inconsciente é uma invenção hindu, basta vermos a importância que possui no Yôga seus termos similares.
1.1 Samskára (impressões)
Os processos mentais (chittavritti) deixam na mente impressões subconscientes, que Pátañjali chama de samskára. Estas impressões permanecem na mente de modo latente, influenciando a vida psíquica, são o que o Yôga chama também de "sementes" (bíja), que produzem "tendências" (vásana), novos pensamentos, redemoinhos mentais (vrittis). Cabe ao praticante de Yôga impedir o surgimento dos samskára e destruir as impressões e tendências que buscam atualização.
Quando uma tendência ou impressão se atualiza, transforma-se em hábito e se aprofunda como samskára. Se tal hábito não é superado, suprimido ou sublimado, ele se transformará em vício, implicará pelo menos a dependência psíquica e a compulsão ao ato repetitivo. Por exemplo: se alguém experimenta um cafezinho num intervalo de trabalho, tendo isto como algo agradável, tenderá a repetir a experiência em todos os intervalos de trabalho, e se sentirá necessitado de um café no dia em que tal atualização não for possível.
Para Pátañjali samskára é o mesmo que memória, já que sem memória não permaneceria na mente impressão alguma, e tampouco haveria desejo de reprisar qualquer ato que fosse.
1.2 Vásana (tendências)
O termo sânscrito vásana também é usado por Pátañjali num sentido quase igual ao de samskára. Podemos traduzir vásana como tendência latente ou impulso. A diferença sutil entre samskára e vásana é que o primeiro tem uma conotação estática de impressão, registro, enquanto que o segundo seria a faceta dinâmica da impressão, ou seja, sua manifestação como tendência, desejo, pulsão. Escreve Feuerstein:
"Os samskára de um mesmo tipo combinam-se para formar configurações ou 'rastros' (vásana) na mente profunda."
Quase ninguém faz tal distinção, pois ambos aparecem juntos e no fundo são a mesma coisa. Mircea Eliade escreve:
"A vida é uma contínua descarga de vásanas que se manifestal nos vrittis. Psicologicamente, a existência humana é uma incessante atualização do subconsciente, mediante 'experiências'. Os vásanas condicionam o caráter específico de cada indivíduo; tal condicionamento está de acordo com a herança e com a situação kármica do indivíduo."
Isto significa de um lado que o reconhecimento da ilusão por si só não liberta o homem, pois segundo o Yôga, nele os vásanas continuarão atuando. De outro lado sabemos que os vrittis podem ser com kleshas ou sem kleshas, e que o termo klesha pode ser traduzido como "mancha", "impureza". Daí que o conceito de vásana está bastante próximo da psicanálise freudiana, pois as tendências aparecem como desejos. Pulsões impuras do inconsciente e desejos inconfessáveis do "id" são quase o mesmo. O impulso inconsciente quer se tornar consciência, o desejo quer se realizar e repousar.
No Yôga os impulsos inconscientes possuem uma dimensão muito ampla, pois estão associados à idéia do karma. São as ações que cobram suas conseqüências num circuito de causa e efeito, em que os atos se registram como expressões de experiências agradáveis ou desagradáveis, em que as impressões se transformam em tendências que, ao se atualizarem na consciência, conduzem irremediavelmente e de novo ao ato. Este círculo é rompido quando o espírito (Purusha) deixa de ser arrastado pela matéria (Prakrití); a ignorância se desfaz quando o yôgi adquire o discernimento e faz uso das técnicas do Yôga. Escreve Pátañjali:
"Hetu-phálashrayálambanaih samgrihítatvád eshám abháve tad-abhávah"."Estando interligados (samgrihitatvád) como causa-efeito, substrato-objeto (ashraya = apoio, suporte, 'substrato'; alambanaih = objeto), os efeitos desaparecem (abhávah) quando a causa desaparece (abháve)".Y. S. - IV, 11
Demonstra o Yôga que os samskáras e vásanas são grandes obstáculos à iluminação, o inconsciente se opõe à ascese, por isso se impõe seu necessário domínio e conscientização. Há também o medo, pois as pulsões inconscientes temem não se atualizarem, e o ego teme sucumbir às forças totalizadoras do inconsciente.
A satisfação dos desejos e a manifestação de formas são impulsos egóicos de exteriorização, mas realizar um desejo é esgotá-lo, e a plenitude de ser das formas está na consumação das mesmas. Donde se fala de uma ânsia de não ser, as tendências kármicas querem todas se auto-destruir, satisfazer-se. Todo o universo material (Prakrití) caminha em direção ao repouso, à reabsorção numa unidade original.
Extraído do livro Yôga e Consciência, de HENRIQUES, Antônio Renato. Pág. 84-87. 2a. ed. Ed. Rígel. São Paulo, 1984